O Livro, Os Óculos e a Vela
Por Ivone Curi
Restavam quietos sobre
a mesa o livro, sobre o livro os óculos e ao lado deles a vela! Era comum a
leitora durante estes serões ausentar-se em busca de algo para bebericar.
– Café, chá ou leite?
– disseram em uníssono os três, depois do que lhes pareceu uma eternidade. A bem da verdade o desafio fora lançado apenas
pra quebrar o silêncio. Pra espantar a sensação de abandono que o grosso livro
escondia entre suas muitas páginas e que os óculos não deixavam transparecer através
das cristalinas lentes. A vela era a única que com seu tremular se denunciava e
afligia a todos.
- Acho um descaso esta
demora! – desabafou a vela.
- Pra mim tanto faz
que demore mais 5 minutos ou 5 anos! - dissimularam os óculos.
- Deixe estar! –
sussurrou o livro!
- Vocês dizem isso
porque têm vida longa, mas pra mim é muito triste gastar em vão minha efêmera
vida!
- De que se queixa? Dos
três, você é a que tem a linhagem mais antiga. Existe desde os tempos remotos –
disse o livro à vela.
- Eu também já fui
artigo raro e de luxo. Tenho muitos antepassados famosos. Como os Pince-nez, os
Lornhons, os Numont, os Ray-ban.
- Todos nós já os
fomos! Só disponíveis para os nobres, o clero e os homens das letras. Hoje
nossa aquisição se democratizou – contemporizou o livro. Daí calou-se e os
óculos e a vela continuaram a lenga-lenga.
- Sim. Já fui
lamparina, candeia...
- Mas de que adianta
se desde a invenção da luz elétrica perdeu a serventia e hoje só existe como
objeto decorativo!
- Não é verdade. Sou
muito usada ainda. Nas celebrações religiosas, nos aniversários...
- Pois eu tenho uma
trajetória muito mais brilhante. De órtese, para corrigir deficiências, à
acessório da moda. Virei cool, querida!
- Você é muito
narcisista. Vê-se com lentes de aumento. Mire-se no exemplo do livro que não fica se
vangloriando.
- Outro que está com
os dias contados. Logo será completamente substituído pelos e-books e se tornará
artigo de museu como os seus antepassados o papiro e o pergaminho!
- Imagine! O livro é
um objeto precioso. Nunca vai desaparecer. Cada vez estão caprichando mais nas
edições, no design, nas traduções. Sem falar nos aparatos: prefácios, notas de
rodapé, mapas, ensaios...
- Sabia, sua cera
derretida, que existem óculos que custam um milhão de reais?
- Sabia, seu esnobe,
que Bill Gates pagou 29 milhões de euros por um diário de Leonardo da Vinci?
- Faz sentido sim que
o livro mais caro pertença ao homem mais rico do mundo!
- E sabia, seu
petulante, que existem velas que custam 1.800 reais a unidade?
- Sabia, sua
sabichona, que o sabiá sabia assobiá
e que só de vê-la desaprendeu?
- Nem vem com esse
trololó! Um ósculo e um soluço!
Emburrados com o
empate, nenhum dos dois deu mais um pio, mas o livro achou por bem fazer este
aparte:
- Um galo sozinho não
tece uma manhã!
- Hã... Hum... –
balbuciaram os dois na maior sincronia!
- Reflitam sobre isso
e digam se concordam que nenhum de nós por si só é capaz de cumprir a missão de
iluminar. Que sem nossos pares deixamos de ser símbolos de luz, sabedoria e
conhecimento. No meu caso, um livro só é
uma arma. Cave ab homme unius libri. Corra de um homem de um livro só! Daí a importância do relacionamento entre os
objetos, pois além de funcionais, somos depositários de afetos e lembranças, o
que deixa claro que temos vida própria. E como vislumbrou Gabo tudo é questão
de despertar nossa alma. E uma vez...
Nesse ínterim a senhora
retorna, pousa a caneca sobre a mesa e enquanto puxa a cadeira, os três perguntam
a caneca:
- Afinal, diga-nos, qual
é o seu conteúdo?
- Chá de café com
leite! – disse sorridente a velha caneca.
Um, dois, três e já a senhora retoma a leitura
que se tratava dos costumes dos homens de se apropriarem das coisas, dos seres
vivos, da terra e dos próprios semelhantes.
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