Das cinzas para a eternidade
Por Laura Assis
Cavalgava livremente sob o pôr daquele sol dourado, suas saias volitando por entre suas coxas e o dorso do cavalo, assim como seus cabelos rubios quase cor de ouro – o que entregava suas origens nada irlandesas. Sentia o gosto das frutas silvestres sem sequer experimentá-las, provava a liberdade do vôo dos pássaros apenas montada em seu garanhão. Seu coração tinha sempre para onde voltar e não precisava mais das palavras para dizer que estava exatamente onde gostaria de estar, embora jamais tivesse desejado estar ali antes, embora jamais tivesse imaginado que uma existência como aquela pudesse ser possível. Sua rotina era a mesma desde que chegara ali: acordar, mergulhar no lago, se vestir e sair sozinha para cavalgar até onde havia cavalgado no dia anterior, apenas para ir além. Nunca sabia o que poderia encontrar ao final de uma de suas cavalgadas, mas nada mais a preocupava agora que havia renascido como a fênix das cinzas ou, como ela havia enxergado aqueles últimos momentos, das trevas.
O ano de suas trevas havia sido mil novecentos e setenta e dois. Encontrou-se com aquele domingo sangrento quando seguia para o convento e foi inútil resistir ao som das espadas e tiros ou tentar escapar de seus próprios “irmãos” ingleses. O que parecia apenas um encontro pacífico entre católicos e protestantes fez com que ela se perdesse das outras jovens que seguiam para o mesmo destino santo e acabasse perdida, no cume de um penhasco, com um soldado inglês no seu encalço. O dia era trinta de janeiro, suponho que todos devam remeter brevemente ao derramamento do sangue de inocentes que apenas desejavam manifestar contra a desigualdade religiosa presente em toda a Irlanda do Norte. Deparou-se com a imensidão do mar abaixo, o céu acima e à sua frente o soldado inglês que já desmontava seu cavalo para capturá-la. Sabia muito bem o que desejava aquele homem e acreditava que sua vida no convento estaria acabada se ela se deixasse capturar. Deu alguns passos na direção dele, segurando o vestido com força e juntando mais e mais tecido das saias entre as mãos. Ele sorriu maliciosamente como se enfim ela tivesse desistido e fosse se entregar, não acreditando no que ela estava fazendo quando virou-se de costas para ele e, já descalça começou a correr com toda a agilidade possível e atirou-se daquele penhasco gritando. Morreria, mas não serviria àquele homem!
Não morreu. Se no topo do penhasco a sensação era de três graus, não podia imaginar a temperatura daquela água que a fez ter alucinações e desmaiar. Mas, o que não tem por destino morrer no mar, as águas devolvem à terra de um modo ou de outro. Acordou ao redor de uma fogueira, numa gruta escura iluminada apenas pelo vermelho das chamas que refletiam em seus cabelos fazendo com que ela se parecesse uma legítima irlandesa. Antes que começasse a se questionar como havia chegado até ali, sentiu uma ligeira dor em seu pescoço e notou que havia um pequeno ferimento, com sangue ainda fresco. O fogo dançava nas paredes da caverna e ela tinha vertigens, supunha que havia fadas dançando ali e o calor que sentia lhe fazia lembrar o verão de sua terra natal. Onde mesmo era sua terra natal? Em meio à tanta febre não conseguia sequer lembrar-se de seu nome, quem poderia supor que se lembraria de suas origens ou de como havia chegado até ali…
Horas, dias, duas semanas se passaram até que ela enfim acordou e deparou-se com olhos questionadores e preocupados encarando-a infinitamente, sem sequer piscar mesmo que rapidamente. Não sabia se deveria agradecer-lhe ou tentar sair dali correndo. Não conseguia lembrar-se de seu próprio nome, muito menos do que estava fazendo naquele lugar, com aquele estranho. Seriam conhecidos? Parentes, amantes talvez? Não sabia, mas não perguntaria ainda. Enfim, o silêncio inquisidor foi rompido e ele explicou como ela havia chegado até ali. Do outro lado do penhasco ele assistiu a sua corajosa fuga e queda no mar, assim como percebeu o mar querendo devolvê-la à terra em segurança. Mas o mar, ah! o mar nem sempre é delicado como uma mãe tentando salvar seu filho da morte. O mar foi revolto e drástico, cuspindo-a com força contra as rochas, seu corpo sem forças rolou de volta querendo ser engolido pelas águas, se debatendo entre águas e rochas, entre rochas e água salgada. O ferimento era quase incurável, o sangue coloria as águas glaciais, tentando aquecê-las sem sucesso e, portanto, misturando-se ainda mais a elas, esvaindo-se de suas veias com tal força e rapidez que parecia ser capaz de colorir de vermelho todo o mar do norte. Do penhasco ele assistia, imóvel, até que decidiu assistir de perto a morte lenta daquele corpo lânguido e colorido por sangue e frio. Saltou, majestosamente, até onde ela se debatia e permaneceu imóvel até que, por um breve instante, ela abriu seus olhos e suplicou por ajuda mesmo sem enxergá-lo naquela escuridão. Seus olhos eram verdes, tão verdes que ele foi transportado para o colo de sua mãe e lembrou-se dos dias de verão, do sol na pele e da grama verde dos jardins do castelo onde havia crescido. Lembrou-se de quanto tempo já havia passado desde que todos se foram e ele permanecia congelado no tempo.
Percebeu a chance de não estar mais solitário por eras e eras e decidido, tirou-a das águas revoltosas, com apenas alguns gestos, sem muito esforço. Com ela em seus braços encontrou um lugar seco, fez uma fogueira para aquecê-la e tentou estancar o sangue lutando contra seu próprio instinto de beber daquele corpo até a última gota. Ela abria os olhos e encarava-o inconsciente e ele sentia sua alma deixando o corpo, lutando para permanecer, mas sem forças para manter-se ali. Rasgou-lhe toda a roupa e percebeu que havia um corte profundo no abdômen que dificilmente permitiria que ela vivesse e, sussurrando em seu ouvido lentamente pediu-lhe permissão para salvar-lhe a vida. Não desejava o sangue dela, ao contrário, desejava que ela vivesse, mesmo que sem alma, para sempre ao seu lado. Entre delírios de febre e vontade de agarrar-se à vida, ela pedia que lhe salvasse, mas o único modo que ele tinha para salvá-la realmente era esperando que ela morresse, enterrando seu corpo em seguida. Não! Havia outro modo, mas não podia considerar como salvação ou talvez devesse, diante do fato de que sua vida se esvaía efêmera e lancinante, com a rapidez do vento que fica para trás nos trilhos dos trens. O tempo dele diminuía a cada instante, o que o fez beijar-lhe duas vezes com tamanha intensidade e vontade de salvá-la que ela, ao acordar, ainda sentia seus lábios na testa e no pescoço.
As lágrimas ardiam em seu rosto frio, sentia uma enorme raiva daquele homem que havia roubado sua alma, mas ao mesmo tempo não conseguia odiar quem, de certa forma, havia tentado salvar sua vida. Embora ela não se considerasse mais viva do que quando encarava o soldado, que já desabotoava suas calças, agora sua morte era por dentro, não do corpo, mas do cerne de sua existência: perdera sua alma para sobreviver. Perdera aquilo pelo qual lutava quando se jogou do penhasco e não sabia se poderia perdoá-lo algum dia, talvez fosse melhor nunca mais voltar a vê-lo. No entanto, a sua voz era doce e calma, seu olhar era terno e sua pele branca com uma moldura ruiva como ela jamais havia visto em toda a sua existência – que agora seria vasta, infinita. Estava praticamente nua, mas era como se os olhos dele não se desviassem dos seus nem por um minuto e ela estava confortável naquela presença que era totalmente estranha e familiar. Sua cabeça girava e girava enquanto aquela voz de veludo a acariciava com tantas e tantas palavras sobre o que havia acontecido e o que poderia acontecer dali em diante. Os primeiros minutos foram desesperadores, mas ela sentia que este era o caminho que seus pés traçavam desde o nascimento, era como encontrar o seu destino e, pouco a pouco, uma enorme esperança e alegria foram nascendo dentro dela. Ela não havia pronunciado nenhuma palavra desde que ele começara a falar, só queria continuar se sentindo tocada por aquele som, tocada por aquele olhar que inspirava tanto cuidado e conforto. Ao final de dois dias ela novamente pegou no sono e ele desapareceu na noite, deixando-a muito bem cuidada por um garanhão marrom avermelhado que atendia pelo nome de “Hunter”. Voltou à caverna pouco antes do amanhecer e lhe acordou com um novo beijo na testa, entregando-lhe um vestido em veludo que lembrava a cor dos seus olhos, verdes como toda a imensidão que existia na Irlanda.
Caminharam juntos para fora da caverna e ela, despida e sem pudor algum, atirou-se ao mar como se comemorasse aquele primeiro banho. As águas, que antes quase congelaram seu corpo, agora eram agradáveis e ela não sentia medo como da primeira vez. Vestiu-se e com os dedos penteou os cabelos embaraçados, com toda a paciência digna de quem tem não apenas uma vida pela frente, mas quantas eras quiser… Montaram juntos o garanhão e partiram em direção ao desconhecido, ela permanecia sem palavras e ele, esperaria por quantos dias ou anos fossem necessários até que ela pudesse dizer qualquer coisa. Encontraram dias e noites, foram beijados pelo sol e tocados pelas estrelas em uma viagem cujo destino final ela não fazia ideia, mas também não se importava. Queria apenas continuar ouvindo a voz de Eric e sentindo seus olhos sobre os seus todos os dias e noites, montando Hunter ou deitados assistindo o pôr do sol. Não, não morriam se o sol tocasse sua pele, não queimavam ou desapareciam. E a cada minuto, era uma nova descoberta para ela, assim como quando viu seu reflexo no lago e assustou-se com o novo tom de dourado e cobre dos seus cabelos. Sorria para si mesma e, por alguns momentos, tal como Narciso, permaneceu apaixonada pela imagem que via nas águas, encantando-se em seguida por outra coisa e mais outra depois. Sentia-se nascida das cinzas e, no oitavo dia de cavalgada, deparou-se com o destino daquela viagem – que estava longe de ser o destino final de sua vida. Era o maior castelo que já havia visto em toda a sua vida, o mais majestoso e imponente também. Flores, pássaros, frutas e anjos espalhados por todos os jardins. Janelas e torres, histórias que já imaginava e queria ouvir e ouvir e ouvir novamente daquela voz que a acalmava e transportava para o melhor que a vida podia oferecer. Era um conto de fadas. Não! Era um conto de vampiros!
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