A viagem que durou uma vida

Por Paloma Carneiro



Há muitas décadas, me perguntaram o que eu pensava sobre a morte. Meus inexperientes raciocínios de jovem, me enganaram sobre essa realidade que agora estou prestes a enfrentar.
Lembro-me da minha infância no campo, onde a inocência era a resposta para os questionamentos mais pueris que invadiam a minha mente.
Lembro-me do piso verde e antigo do chão da sala e de quando, às vezes, faltava iluminação elétrica em noites de lua. Meu pai, um homem experimentado na vida, acostumado à trabalhos pesados, ainda tinha um brilho no olhar, restavam ainda alguns sonhos guardados no peito deixados para segundo plano para que a família viesse primeiro. Lembro-me das histórias de assombração que ele nos contava, enquanto eu me aninhava em seu colo e observava o rodopiar assustador das copas dos velhos pinheiros, embalado pelo uivar ancestral do vento. Me sentia protegida e muito distante dos mistérios que cercavam a vida após a morte dos contos do meu velho pai. Passei inúmeras fases do que foi minha vida ao lado deste homem: da mais doce à mais amarga experiência, do primeiro beijo às derradeiras decepções amorosas e consequente coração quebrado, regenerado e quebrado outra vez. Caí copiosas vezes, e, se me reergui, foi pela força de um simples casal, que não tiveram estudos e quaisquer oportunidades. Eles que usavam a fé como esteio e fonte de sabedoria. Uma família tradicional, de valores cristãos que mais tarde, rebelada e com um nível mais avançado nos estudos, se tornariam questionáveis para mim.
Aqui estou eu, aos oitenta e cinco anos, com dificuldades para me mover e com o corpo magro repleto de dores e hematomas que não sei como surgiram. Olho no espelho e não vejo mais as tão odiadas marcas de acne que um dia tive e que datavam uma juventude há muito perdida. Por algum motivo eu não era mais o que costumava ser, tenho agora no rosto uma pele antiga e oxidada, marcas profundas deixadas pela vida, marcas que refletem expressões exageradas de alegria e tristeza adquiridas de outros tempos.
Olho no espelho, e, convicta, percebo que me observo no passado com os olhos de outra pessoa. Meu sorriso, antes metálico, agora amarelado pelos vícios e não mais jovial quanto antes, não possui a mesma inocência de tempos atrás, nem tampouco o encanto de adolescente. O cabelo negro e farto que herdei de minha mãe, se tornou branco e sem qualquer brilho. Sinto o corpo fraquejar, as pernas vacilarem contra o peso. Sinto medo. Um medo que jamais sentira, e que um dia desdenhei com a coragem cega da pouca vivência. Não havia ali meu pai para me segurar se eu caísse e não sobrou ninguém para me acompanhar em um caminho que eu desconhecia.
Me pergunto se é essa a sensação de envelhecer, me pergunto se foi essa a sensação que meus pais e todos aqueles que amei tiveram antes de seguir viagem.
Olho para minhas mãos agora, mãos que me fizeram tudo o que sou hoje, antes tão úteis e talentosas, agora flácidas e calejadas. Posso reviver todas as notas musicais que produzi com elas no meu violão que há muito abandonei num canto qualquer da casa. Consigo sentir as cordas vibrando sob meus dedos e emitindo um som conhecido, notas doces e estranhamente familiares. Recordo do meu irmão mais velho me ensinando o amor pela música através de um violão antigo, presente na família há muitas gerações. Lembro dos primeiros acordes, dos primeiros sons de Pink Floyd, que me empenhei para aprender. Posso ver o sorriso que desenhei nos lábios dele, lábios que quase nunca sorriam.
Posso ver a minha irmã, dez anos mais velha que eu, se arrumando para sair na cidade, esboçando sorrisos e depositando sua alegria em coisas que eu ainda não podia entender, mas que não tardaria fazer sentido para mim. Consigo sentir o cheiro da casa limpa e do almoço fresco que minha mãe preparava, resultado de uma manhã toda na cozinha, numa santa e silenciosa entrega. Posso sentir o amor dela temperando a comida, ovos caipira cozidos, couve picada, polenta cremosa, pinhão e milho cozido para o café. Penso nas marcas no rosto da minha mãe. Não tão profundas quanto as que tenho agora, ela era ainda jovem, mas naquele ponto, a vida já havia lhe deixado cicatrizes.
Me volto agora para o presente, e me deparo com um mundo consumido pela dor, cheirando a sangue e putrefação. Vejo aves carniceiras à espreita, planando um céu coberto por uma espessa camada de pó. O azul do infinito não podia mais ser vislumbrado, e tudo me leva a crer que, por um espaço de tempo indeterminado seria assim. A inocência havia se quebrado: sonhos já não eram sonhados e não havia mais infância. Restou apenas cinzas pelo chão e fragmentos de um planeta carbonizado. Me faltava o ar, e o desespero fazia gotejar suor por todos os poros do meu corpo, a sensação nauseante da morte que tanto temi havia chegado. Olho para o chão e vejo um brinquedo sujo e desgastado, um único vestígio de uma felicidade inocente que um dia vivi criando um contraste grotesco com o cenário. Olho uma última vez para o céu e um único raio de luz curiosamente atravessa a nuvem de poeira por uma fresta que se abre. Sinto-a tocar meu rosto, ouço uma melodia familiar, não estava sozinha. Estava voltando para casa. Fechei os olhos.

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